“Era uma vez uma cor muito rara e muito triste, que se chamava Flicts. Não tinha a força do vermelho, não tinha a imensa luz do amarelo, nem a paz que tem o azul. Não existe nada no mundo que seja Flicts…”
Em 1969, Ziraldo lançou um livro, Flicts, que conta a história de uma cor que não encontrava lugar no mundo. Flicts povoou a imaginação e as brincadeiras de milhões de crianças no Brasil, inclusive eu. Mas só recentemente é que me dei conta que o Cerrado é um bioma Flicts.
Sim, Flicts! Eu poderia começar a contar a história do Cerrado assim: era uma vez um bioma muito raro e muito triste, ele se chamava Cerrado. E poderia prosseguir dizendo que ele não tinha a exuberância da Amazônia, nem os incríveis animais da savana africana, tampouco a força da Mata Atlântica…
Antes de eu me dar conta que o Cerrado é Flicts, eu costumava dizer que o Cerrado é um ambiente azarado: ser uma savana em um país que tem a maior floresta tropical do mundo, a Amazônia, ou que tem um dos biomas mais ameaçados do planeta, a Mata Atlântica, ou ainda, que possui a maior planície úmida do mundo, o Pantanal, não é fácil…
Mesmo sendo o Cerrado um bioma único, uma savana com a maior diversidade de árvores do mundo, com uma quantidade enorme de animais, ninguém dá bola para ele. Ele não encontra seu lugar no mundo. E, há muitos exemplos disso, mas dois são suficientes para entender toda a dimensão Flicts do Cerrado.
Primeiro, segundo a Constituição Federal, a Mata Atlântica, a Amazônia e o Pantanal são patrimônios nacionais. E o Cerrado? nem menção a ele… Vale dizer que a Caatinga e o Pampa tampouco são considerados patrimônios nacionais, mas essa é outra história…
E de que vale ser patrimônio nacional? Talvez diretamente, na prática, nada, mas sinaliza claramente a importância que se quer dar ao bioma. A Amazônia, por exemplo, mesmo que continue sendo insistentemente destruída, existe um consenso de que a floresta deve ser conservada, o desmatamento é condenado e o governo instado a tomar providências, ainda que isso não aconteça. A Mata Atlântica, mesmo que o que nos resta seja tocar a marcha fúnebre para ela, tem, ainda, grande apelo entre as pessoas.
O Cerrado, por sua vez, ganha uma sinalização de ambiente feio, sem graça, pronto a ser ocupado, sem grandes prejuízos para ninguém.
E isso me remete diretamente ao segundo exemplo. Há alguns anos atrás, entrei num avião e me deparei com uma revista de bordo, da companhia aérea, com uma manchete na capa, dizendo algo assim: como aumentar a produção agropecuária do Brasil sem derrubar nenhuma árvore. Eu imediatamente, do alto da minha ingenuidade, pensei que a matéria seria sobre soluções tecnológicas ou talvez sobre formas mais sustentáveis de produzir. Mas, não, qual não foi minha surpresa ao ler a matéria e entender que o que se sugeria era expandir a produção para cima do Cerrado, e não derrubar nenhuma árvore da Amazônia. Todas as que seriam inevitavelmente derrubadas no Cerrado, nada valiam…
Metade dos 2 milhões de km2 originais do Cerrado já foram completamente desmatados. Além disso, outros 20% da vegetação natural já está muito degradada. A criação de Brasília, ao invés de valorizar o Cerrado, acelerou seu desaparecimento. Se as coisas continuarem nesse ritmo, o Cerrado vai se tornar uma lenda antes de 2050. Na verdade, ele já é quase uma lenda: a prova cabal é que as crianças que moram em Brasília nem sequer sabem que moram no Cerrado…
Ou seja, o Cerrado não vale nada, é como Flicts, apenas o frágil, feio e aflito Cerrado. Mas será que é isso mesmo?
Será que o Cerrado não merece ser preservado? Será que não vale a pena conservar essa savana com a maior diversidade de árvores do mundo? Será que não é importante conhecer as mais de 4 mil plantas que só existem no Cerrado? E as mais de 800 espécies de abelhas que existem no Cerrado? Será que não é fundamental conservar o bioma de onde vem boa parte da água do Brasil?
Parece haver uma impressão generalizada de que o Cerrado pode ser convertido em área para agricultura e para a pecuária sem um grande prejuízo para o meio ambiente. Isso não é verdade e além disso, a ocupação do Cerrado pelas atividades agropecuárias vem sendo feita de maneira pouco racional e nada sustentável. Onde havia Cerrado, hoje, existe majoritariamente soja e bois… ah, e agrotóxicos, muito agrotóxico…
Um dos perigos que ameaçam o Cerrado é o da história única: como se a desastrosa e predatória ocupação do bioma fosse a única possibilidade, como se não houvesse outras formas de produzir e gerar riqueza no nosso bioma Flicts. Acreditar numa narrativa única, sem considerar outras formas de viver e de perceber o Cerrado pode resultar em um desastre completo. O pior é que estamos nos tornando cada vez mais eficientes: demoramos quase 500 anos para acabar com a Mata Atlântica, da qual sobram menos do que 10%, mas bastaram 50 anos para destruir o Cerrado.
Criar uma cultura de conhecimento e de valorização do Cerrado é, ao lado de muitas outras ações, fundamental. A natureza é inventada, em boa parte, pelas narrativas sobre ela. Quantos de nós, achamos a savana africana com seus elefantes e zebras algo fascinante mesmo que nunca tenhamos pisado nesse continente? Ou quantos são os que tem sua imaginação incendiada pelas histórias da Amazônia, de viajantes e índios? Não é curioso que as crianças tenham fascínio pelos marsupiais da Austrália, como por exemplo o canguru, mas não saibam que bem aqui no Cerrado, temos também mamíferos marsupiais, como o gambá e a cuíca?
São as narrativas sobre paisagens e sobre a natureza que povoam nossa imaginação e fazem com que passemos a acreditar que certas coisas merecem ser conservadas enquanto outras não. Assim, é essencial construir novas narrativas sobre o Cerrado para que nosso bioma Flicts encontre seu lugar no mundo.